terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Violência contra a mulher ultrapassa as barreiras de classe

"De trabalhadora arrastada a presidenta xingada, 2014 expôs condição da mulher", denunciou a pesquisadora Flávia Rios, em entrevista à Radioagência BdF, ao analisar as relações de gênero e o que houve de mais marcante em 2014. Doutora em sociologia pela USP, ela explica que a violência contra a mulher ultrapassa as barreiras de classe. 

De acordo com a pesquisadora, a atual conjuntura reflete um avanço dos setores mais conservadores. As cenas de violência e intolerância se multiplicam e têm como alvo os mesmos grupos oprimidos historicamente, entre eles as mulheres. 

Acompanhe a entrevista:

Radioagência BdF: Flávia, falando em conquistas e violações de direitos, que fatos marcaram 2014 para as mulheres?
Flávia Rios: Eu tenho algumas imagens que me marcaram em relação às mulheres nesse ano. Imagens que me chocaram. Uma delas foi o caso da Cláudia, o assassinato dela. Uma mãe de quatro filhos, uma trabalhadora arrastada. Essa eu acho que foi a cena mais marcante de 2014. Especialmente porque simboliza as condições de opressão da mulher negra, pobre, que vive na favela. As condições intercruzadas e o tipo de morte chocaram o Brasil e o mundo, e mobilizou os movimentos sociais. Muitos coletivos se organizaram a partir de Cláudia. Por outro lado, do ponto de vista legal, as pessoas responsáveis estão na ativa.

Um segundo caso foi o da abertura da Copa do Mundo, os xingamentos que a presidente recebeu. Xingamentos feitos em português, inglês, e que remontam a dimensão dos estereótipos da mulher e reduzem a figura da mulher mesmo em uma posição super elevada. Eu falei inicialmente de um caso de uma mulher em uma posição fragilizada na sociedade e agora uma chefe de Estado também vivenciando uma experiência de um estupro coletivo e simbólico, tendo sua imagem, sua figura, sendo ridicularizada e sexualizada o tempo todo por xingamentos que até então nunca se tinha ouvido na história do país para se referir a uma pessoa que ocupava uma posição mais elevada do Executivo. Então, são imagens simbólicas que marcam duas dimensões. Uma dimensão na base da pirâmide social e outra também em uma dimensão mais elevada em termos de política.

Radioagência BdF: A subrepresentatividade no Congresso Nacional é mais um exemplo de como se dá discriminação de gênero?
FR: É a primeira vez que a lei eleitoral de cota mínima de 30% para mulheres se faz efetiva, e os partidos com medo de sanção tentam colocar mulheres para se candidatar. Então, teve um incremento no número de mulheres que se candidataram, isso é positivo e diz respeito a uma conquista dessas mulheres, e também por sua vez teve uma melhor representação nesses cargos legislativos quando comparados a 2010. Ainda que os dados sejam bastante alarmantes. Hoje nós temos uma mulher para cada 10 deputados federais.

Radioagência BdF: Por que a violência seja física, sexual e psicológica ainda faz parte da nossa realidade?
FR: Primeiro, diz respeito ao estímulo que a cultura brasileira constrói o tipo de masculinidade. As relações de gênero no Brasil perpassam por dimensões culturais, educacionais, de formação, mas você encontra padrões comportamentais em todas as classes sociais. Mas o comportamento violento masculino é algo marcante em todas as classes sociais, independentemente de escolaridade. Eu acho que diz respeito à forma como cultura machista e patriarcal é construída e o lugar da mulher. Espera-se que mulheres estejam em certos lugares. E por mais que hoje no Brasil tenhamos mulheres que estudam mais, mulheres têm mais anos de escolaridade, esse incremento educacional não corresponde a um aumento equivalente do seu salário, nem mesmo das suas posições no mercado de trabalho.

Radioagência BdF: Em termos de políticas públicas para a igualdade de gênero, que avanços são necessários para os próximos anos?
FR: Do ponto de vista das mulheres são as conquistas no que diz respeito a autonomia do corpo. Essa é uma das principais lutas, bandeiras, marchas. A defesa do aborto. Essa é uma pauta muito significativa porque diz respeito a autonomia da mulher e a possibilidade de ela decidir. Outras conquistas dizem respeito à luta por representação política. Muitas pautas femininas e feministas não conseguem avançar no Executivo e no Legislativo justamente porque somos mal representadas. Uma representação maior das mulheres, conquistas via partido, de forma partidária, mas também dos movimentos sociais e articulação podem promover e garantir melhorias nas condições das mulheres, que dizem respeito a questão da violência, do parto, da saúde, do tratamento e também da representação nos meios de comunicação, porque esse também é um dos vetores da má representação das mulheres e estímulo a comportamentos masculinos absolutamente violentos.

Radioagência BdF: Entre os fatos positivos de 2014 (se eles existem), o que você ressaltaria em relação às mulheres?
FR: Eu gostaria de marcar um evento super significativo que aconteceu nesse período que é a memória de uma escritora muito influente no seu período, que conseguiu reconhecimento internacional, que foi Carolina Maria de Jesus. Os movimentos sociais ergueram essa mulher e a produção e reflexões dela, e trouxeram os centenários espalhados Brasil afora, mostrando o vigor da mobilização coletiva no que diz respeito à reconstrução da memória e da produção de discursos das mulheres no Brasil.

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